A arte na época de sua reprodutibilidade técnica

Analisaremos agora o ponto de vista de Walter Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica da arte, analisando os diferentes conceitos e prismas desse fenômeno. 
Mesmo por princípio, a obra de arte foi sempre suscetível de reprodução. As técnicas de reprodução, entretanto, são um fenômeno inteiramente novo, que nasceu e se desenvolveu no curso da história, por etapas sucessivas, separadas pro longos intervalos, mas num ritmo cada vez mais rápido. São notórias as imensas transformações introduzidas na literatura pela impressão, isto é, pela reprodução técnica da escrita. A litografia abria o caminho para o jornal ilustrado, na fotografia, já está contido em germe o filme falado.
Com o século XX, as técnicas de reprodução atingiram um tal nível que estão agora em condições não só de se aplicar a todas as obras de arte do passado e de modificar profundamente seus modos de influência, como também de que elas mesmas se imponham como formas originais de arte. Sob esse ponto de vista, nada é mais revelador do que a maneira pela qual duas de suas diferentes manifestações – a reprodução da obra de arte e a arte cinematográfica – atuaram sobre as formas tradicionais de arte.
À mais perfeita reprodução sempre falta alguma coisa: o hic et nunc da obra de arte, a unicidade de sua presença no próprio local onde ela se encontra.
O hic et nunc do original constitui o que se chama sua autenticidade. A própria noção de autenticidade não tem sentido para uma reprodução, técnica ou não. A reprodução técnica é mais independente do que original. A técnica pode transportar a reprodução para situações nas quais o próprio original jamais poderia se encontrar.
Ainda que as novas condições assim criadas pela técnica de reprodução não alterassem o próprio conteúdo da obra de arte, de qualquer modo desvalorizam seu hit et nunc. O que faz com que uma coisa seja autêntica é tudo o que ela contém de originariamente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico.
Na época da reprodutibilidade técnica, o que é atingido na obra de arte é sua aura. As técnicas de reprodução destacam o objeto reproduzido do domínio da tradição. Multiplicando-lhe os exemplares, elas substituem por um fenômeno de massa um evento que não se produziu senão uma vez. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se à visão ou à audição em qualquer circunstância, elas lhe conferem uma atualidade. Esses dois processos conduzem a um considerável abalo da realidade transmitida: ao abalo da tradição, o que é a contraface da crise que atravessa atualmente a humanidade e de sua atual renovação. Eles se mostram em estreita correlação com os movimentos de massa que hoje se produzem. Seu mais eficaz agente é o filme. Mesmo considerado sob forma mais positiva, e precisamente sob essa forma, não podemos apreender a significação social do cinema caso negligenciemos seu aspecto destrutivo, seu aspecto catártico: a liquidação do elemento tradicional na herança cultural.
Ao curso dos grandes períodos históricos, juntamente com o modo de existência das comunidades humanas, modifica-se também seu modo de sentir e de perceber. A forma orgânica que a sensibilidade humana assume – o meio no qual ela se realiza – não depende apenas da natureza, mas também da história. As modificações a que hoje assistimos no meio onde se organiza a percepção podem ser entendidas como um declínio da aura, estamos em condições de indicar as causas sociais que motivaram esse declínio. Encontramos hoje, nas massas, duas tendências de igual força: elas exigem, por um lado, que as coisas se lhes tornem, espacial e humanamente, “mais próximas”, e tendem, por outro, a acolher as reproduções, a depreciar o caráter daquilo que só é dado uma vez. Despojar o objeto de seu véu, destruir sua aura, eis um sintoma que logo assinala a presença se uma percepção tão atenta ao que “se repete identicamente no mundo”, que, graças à reprodução, ela chega a estandardizar o que não existe mais que uma vez. A adequação da realidade às massas, bem como a conexa adequação das massas à realidade constituem um processo de eficácia ilimitada, tanto para o pensamento quanto para a intuição.
A unicidade da obra de arte não se distingue de sua integração neste conjunto de reações conhecido como tradição. Essa própria tradição, sem dúvida, é uma realidade muito viva, extremamente mutável. Originalmente, é o culto que expressa a incorporação da obra de arte num conjunto de relações tradicionais. Sabe-se que as mais antigas obras de arte nasceram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, depois religioso.
Reagiram professando a “arte pela arte”, isto é, uma teologia da arte. Essa doutrina conduzia diretamente a uma teologia negativa: terminou-se efetivamente por conceber uma arte “pura”, que recusa não somente desempenhar qualquer papel essencial, mas inclusive submeter-se às condições impostas por qualquer elemento objetivo.
Para estudar a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, é preciso levar em grande conta essa conjunto de relações. A emancipação da obra de arte da existência parasitária que lhe era imposta por sua função ritual. Reproduz-se cada vez mais obras de arte que foram feitas, justamente, para ser reproduzidas. Desde o critério de autenticidade não mais se aplica à reprodução artística, toda a função da arte é subvertida. Em lugar de repousar sobre o ritual, ela se funda agora sobre uma outra forma de práxis: a política.
Se se consideram os diversos modos pelos quais uma obra de arte pode ser acolhida, a ênfase coloca-se ora sobre um fator, ora sobre outro; entre tais fatores, há dois que se opõem diametralmente: o valor da obra de arte como objeto de culto, e seu valor como realidade capaz de ser exposta.
À medida que as obras de arte se emancipam de seu uso ritual, tornam-se mais numerosas as ocasiões de serem expostas. Um busto pode ser enviado daqui pra lá; por isso, ele pode ser mais exposto do que uma estátua de deus, que tem seu lugar marcado no interior de um templo.
Hoje a preponderância absoluta de seu valor expositivo lhes empresta funções inteiramente novas, entre as quais pode ocorrer que aquela da qual temos consciência – a função artística – apareça depois como acessória. Já é certo que, mesmo agora, a fotografia, e ainda mais, o cinema são claros testemunhos nessa direção.
Para a evolução histórica, os clichês deixados por Atget são verdadeiras provas documentais. Também eles possuem uma secreta significação política. Não mais se prestam a uma consideração desinteressada: inquietam quem os contempla; para chegar a eles o espectador intui a necessidade de seguir um certo caminho. Ao mesmo tempo, os jornais ilustrados começam a se apresentar ao leitor como indicadores itinerários. Com esse tipo de fotografia, a legenda torna-se pela primeira vez necessária. E essas legendas têm, evidentemente, um caráter inteiramente diverso que o título de um quadro. As direções que os textos dos jornais ilustrados impõe a quem olha as imagens se tornarão ainda mais precisas e imperativas com o filme, onde é impossível apreender, ao que parece, qualquer imagem isolada sem levar em conta a sucessão de todas as imagens a que precedem.
A polêmica que se manifestou, no curso do século XIX, entre os pintores e os fotógrafos no que diz respeito ao valor respectivo de suas obras, dá-nos hoje a impressão de responder a um falso problema e de fundar-se numa confusão. Liberada de suas bases culturais pelas técnicas de reprodução, a arte já não mais podia sustentar suas pretensões de independência. Mas o século que assistia a essa evolução não foi capaz de perceber a modificação funcional que ela trazia para a arte.
Já se haviam gasto vãs sutilezas em decidir se a fotografia era ou não uma arte. Os problemas colocados pela fotografia à estética tradicional não passavam de brinquedos de infantes comparados aos que iriam ser colocados pelo filme. Daí essa cega violência que caracteriza os primeiros teóricos do cinema.
No teatro, é o ator em pessoa que, em definitivo, apresenta diante do público sua própria atuação artística: já a atuação do ator cinematográfico exige a mediação de todo um mecanismo. Decorrem desse fato duas conseqüências. O conjunto de aparelhos que transmite ao público a atuação do artista não é obrigado a respeitá-la integralmente.
O intérprete cinematográfico, não apresentando suas atuações pessoalmente, não ter, a exemplo do ator de teatro, a possibilidade de adaptar sua representação, enquanto ela se processa, às reações dos espectadores.
No cinema, o que importa não é o fato de o intérprete apresentar ao público um outro personagem que não ele mesmo; é antes o fato de que ele próprio se apresenta no aparelho.
O homem deve agir, seguramente com toda sua pessoa viva, e todavia privada de aura. Pois sua aura depende de seu hit et nunc. Ela não suporta reprodução alguma. No teatro, a aura de Macbeth é inseparável da aura do ator que desempenha o papel, tal como ela é sentida pelo público vivo. A filmagem no estúdio tem como peculiaridade o fato de substituir o público pelo aparelho. A aura dos intérpretes necessariamente desaparece e, com ela, a dos personagens que representam.
Se o ator de teatro entra na pele de um personagem que representa, é muito raro que o intérprete cinematográfico possa ter a mesma atitude. Ele não desempenha o papel de modo contínuo, mas numa série de sequencias isoladas.
Nada revela melhor o fato de a arte haver abandonado o domínio da “bela aparência”, fora do qual, durante muito tempo, se acreditou que ela necessariamente desapareceria.
Como notava Pirandello, o intérprete cinematográfico sente-se estranho diante de sua própria imagem que lhe é apresentada pela câmera.
Diante do aparelho registrador, ele sabe que, em última instância, é com o público que se liga. Este mercado, no qual ele não vende apenas sua força de trabalho, mas sua pele e seus cabelos, seu coração e seus rins, no momento em que o ator lhe presta um trabalho determinado não mais pode imaginá-lo, do mesmo modo como sucede com um objeto qualquer produzido numa fábrica. À medida que restringe o papel da aura, o cinema constrói artificialmente, fora do estúdio, a “personalidade” do ator: o culto da “estrela”, que favorece o capitalismo dos produtores cinematográficos, protege essa magia da personalidade, que há muito já se reduzia ao encanto podre de seu valor mercantil.
A técnica do cinema assemelha-se à do esporte, no sentido em que todos os espectadores são, em ambos os casos, semi-especialistas
Durante séculos, um pequeno número de escritores encontrava-se diante de vários milhares de leitores. No fim do século passado, a situação se modificou. Com a ampliação da imprensa, um número sempre crescente de leitores passou-se para o lado dos escritores. O processo se iniciou quando os jornais abriram suas colunas para um “correio de leitores”. Entre o autor e o público, consequentemente, a diferença está em vias de se tornar cada vez menos fundamental. Com a especialização crescente do trabalho, cada indivíduo foi obrigado a se tornar, voluntária ou involuntariamente, um especialista em sua matéria e essa qualificação lhe confere uma certa autoridade. A competência literária não mais repousa sobre uma formação especializada, mas sobre uma multiplicidade de técnicas, forjando-se assim um bem comum.
Tudo isso vale sem reservas para o cinema, onde mudanças de perspectiva, que exigiram séculos no domínio literário, realizaram-se em dez anos. Pois, na prática cinematográfica (sobretudo na Rússia), a evolução já foi parcialmente realizada. Os produtores de filmes têm interesse em estimular a atenção das massas para representações ilusórias e espetáculos equívocos.
A aparelhagem, no estúdio, penetrou tão profundamente na própria realidade que, para devolver-lhe a pureza, para despojá-la desse corpo estranho que a aparelhagem nela constitui, é preciso recorrer a um conjunto de procedimentos particulares: variação dos ângulos das tomadas, montagem reunido várias sequencias de imagens do mesmo tipo.
Essa situação do cinema, que se opõe nitidamente à do teatro, conduz a conclusões ainda mais fecundas se for comparada à pintura. Qual é a relação entre o operador e o pintor?
O pintor observa, em seu trabalho, uma distância natural entre a realidade dado e ele mesmo; o cameraman penetra em profundidade na própria trama do dado. As imagens que obtém diferem extraordinariamente. A do pintor é global, a do cameraman fragmenta-se num grande número de partes, cada uma das quais obedece a leis próprias. Para o homem de hoje, a imagem do real fornecida pelo cinema é infinitamente mais significativa, pois ela só o consegue precisamente à medida que usa aparelhos para penetrar, do modo mais intensivo possível, no próprio coração desse real.
As técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa diante da arte. À medida que diminui a significação social de uma arte, assiste-se no público a um divórcio crescente entre o espírito crítico e a fruição da obra. No cinema, o público não separa a crítica da fruição. O elemento decisivo, aqui, é que, mais do que em qualquer outra parte, as reações individuais, cujo conjunto constitui a reação maciça do público, são aí determinadas desde o início, pela imediata virtualidade de seu caráter coletivo. Ao mesmo tempo que se manifestam, tais reações controlam-se mutuamente. Ainda nesse ponto o contrate com a pintura é muito significativo. Os quadros sempre pretendem ser contemplados apenas por um espectador ou por um pequeno número de espectadores.
O que caracteriza o cinema não é apenas a maneira pela qual o homem se apresenta ao aparelho, mas também o modo pelo qual ele figura na representação – devido a esse aparelho – o mundo que o cerca. Um exemplo da psicologia da realização revelou-nos que o aparelho pode desempenhar um papel de teste. Depois da Psicologia da vida cotidiana, as coisas modificaram-se bastante. Ao mesmo tempo que as isolava, o método de Freud permitiu a análise de realidades que até então se perdiam, sem que tomassem em consideração, no vasto fluxo do percebido. Ampliando o mundo dos objetos que passamos a levar em consideração, tanto na ordem visual quanto na ordem auditiva, o cinema trouxe consequentemente, um aprofundamento de percepção.
Com relação á pintura, a superioridade do cinema reside em permitir analisar melhor o conteúdo dos filmes e assim fornecer um inventário incomparavelmente mais preciso da realidade. Com relação ao teatro, essa superioridade na análise reside em o cinema poder isolar um maior número de elementos constituintes.
Uma das tarefas essenciais da arte, em todos os tempos, consistiu em suscitar uma demanda, num tempo que não estava maduro para satisfazê-la em plenitude. Os dadaístas davam muito menos importância à utilização mercantil de suas obras do que ao fato de que não pudessem elas se transformar em objeto de contemplação. Por sua técnica, o cinema liberou o efeito de choque físico da ganga moral em que o dadaísmo, de certo modo, o havia encerrado.
A massa é uma matriz de onde brota, atualmente, todo um conjunto de novas atitudes em face da obra de arte. A quantidade tornou-se qualidade.
Desde a Pré-história, os homens são construtores. Muitas formas de arte nasceram e, em seguida, desapareceram. Se o filme rejeita basicamente o valor cultual da arte, não é apenas porque transforma cada espectador em especialista, mas porque a atitude desse especialista não exige de si nenhum esforço de atenção. O público das salas escuras é indubitavelmente um examinador, mas um examinador que se distrai.

 

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