São Bernardo, obra de Graciliano Ramos, é um romance interessante, devido ao estilo em que foi elaborado. Nessa obra, o próprio protagonista, Paulo Honório, narra sua história, através do romance que está escrevendo, como forma de executar uma re-análise de sua vida. Algo semelhante a esse processo pode ser também encontrado na obra Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Sendo Paulo Honório personagem e narrador do conto de sua vida, ele enquadra-se na categoria de narrador onisciente e pessoal, narrado em primeira pessoa.Por não possuir total noção do que ocorre no âmbito psicológico das outras personagens, somente de si próprio, podemos concluir que se trata de um narrador pseudo-onisciente:
Agitam-se em mim sentimentos, colerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar. Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito. (RAMOS, 2006, p. 106).
O governador gostou do pomar, das galinhas orpington, do algodão e da mamona, achou conveniente o gado limosino, pediu-me fotografias e perguntou onde ficava a escola […]. (RAMOS, 2006, p. 44).
Paulo Honório foi criado por uma doceira negra, chamada Margarida, após ser abandonado pelo seu pai. Aos dezoito anos, comete um ato de extrema violência ao esfaquear João Fagundes por se envolver com uma amante, Germana.
Desde cedo já possuía a cobiça em seu temperamento, visando o acúmulo de capital. Desenvolvem então algumas táticas, como empresar dinheiro cobrando juros, passar necessidades… Com o capital necessário acumulado, Paulo retorna à sua terra de origem, Viçosa. Nessa região ficava o grande objeto de desejo de Paulo: a fazenda São Bernardo. O dono atual dessa fazenda era Luis Padilha, filho de Salustiano Padilha, o antigo patrão do protagonista. Sobre as características principais de Luis, ele possuía grande vício na bebida, mulherengo, características essas que elevavam sua já natural taxa de incompetência.
Paulo começa então seu plano de possuir a fazenda. Novamente desenvolve suas técnicas e armações para conseguir tal feito. Primeiramente, aproximando-se de Luis para conquistar sua amizade, abrindo assim, uma porta de novas oportunidades, baseando-se na nova confiança que Padilha adquiriu por Honório. Paulo empresta dinheiro a Luís, vai orientando-o de forma errada. Seguindo esses conselhos, caindo nas armadilhas de Honório, Padilha vê-se em uma péssima situação, obrigado a vender para Paulo a fazenda a um preço muito baixo.
Adquirindo a fazenda, Paulo começa a erguê-la novamente, através de violência, trapaça, emprestando dinheiro aos bancos. Possui o apoio do advogado João Nogueira, que o auxilia nas trapaças judiciais.
Honório então compra maquinários novos para a propriedade, e parte também para técnicas “imperialistas”, conquistando novas terras. Nesta disputa por terras, apoiado por seu capanga Casemiro Lopes, ele assassina seu vizinho Mendonça, que tentou expandir suas terras pela propriedade de Paulo.
O protagonista também criou laços com o jornalista Gondim, o padre Silvestre e políticos locais. Todas essas pessoas eram utilizadas por Paulo, como peças em um jogo de xadrez, que ele recolocava de acordo com seu interesse.
Paulo constrói uma escola na fazenda, como forma de ganhar a confiança do governador. Luis Padilha, antigo dono da fazenda torna-se o professor da escola. Uma capela é construída para agradar ao padre. Enfim, Paulo joga todas suas peças, constituindo um cenário propício para sua crescente elevação de poder, domínio e influência.
Passando essa fase de reconstrução da São Bernardo, agregando novas atividades à fazenda (plantação de algodão, avicultura, policultura, criação de gado, etc), Paulo decide então constituir família, se casar, para que possa ter um herdeiro. De início, a mulher com quem pensa em se casar é Marcela, a filha do juiz; morena, perto dos trinta anos.
Porém, conhece e se apaixona pela professora da vila, Madalena, loura. Consegue então se casar com ela, que se muda para São Bernardo juntamente com sua tia, Glória.
O casamento com Madalena é um ponto fundamental para uma radical, porém um pouco lenta mudança na vida de Paulo. A partir desse acontecimento, interferências vão surgindo, e os fatos começam a tomar novos e complexos caminhos que convergem para a ruína do protagonista.
Madalena, por ser bondosa, ter uma mente bem decidida, preocupar-se com os demais, causa grande interferência nos processos traiçoeiros de conquista e dominação de Paulo.
Madalena auxilia sempre os empregados da fazenda, preocupa-se em melhorar cada vez mais a escola da fazenda, passa a trabalhar auxiliando Ribeiro, o guarda-livros. Neste trabalho executado com o guarda-livros, Madalena demonstra uma ideologia que desagrada muito Paulo, comportamentos comunistas e intelectuais. Essa intelectualidade e ideais comunistas são consideradas, por Paulo, como elementos inadequados na composição ideológica, de personalidade de uma mulher:
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. (RAMOS, 2006, p. 103).
Devido a sua postura e, posteriormente, ao demasiado ciúme de Paulo Honório, Madalena torna-se então a antagonista da história:
Atormentava-me a idéia de surpreendê-la. Comecei a mexer-lhe nas malas, nos livros e a abrir-lhe a correspondência. Madalena chorou, gritou, teve um ataque de nervos. Depois vieram outros ataques, outros choros, outros gritos, choveram descomposturas e a minha vida virou um inferno. (RAMOS, 2006, p. 147).
Paulo então faz grandes maus tratos com Madalena, submetendo-a a humilhações. As brigas entre o casal são cada vez mais freqüentes, devido a eles serem antíteses comportamentais personificadas, um em relação ao outro.
O casal tem um filho, que passa a ser rejeitado pelo pai, não possui a afeição de Honório. Pelo contrário, os choros de criança irritam extremamente o pai.
Não suportando mais essa situação, Madalena comete suicídio. Esse fato é outro aspecto marcante para o desenvolvimento da história de Paulo. A partir disso, os caminhos começam a convergirem-se cada vez mais, em escala de proporção não mais aritmética, mas geométrica, em direção à sua ruína.
Pessoas, aliados passam a abandoná-lo, como Glória, Ribeiro, Luis… O psicológico de Honório fica em conflito, sua obsessão por ganhar dinheiro, conquista, dominação vai diminuindo.
Chega a revolução de 30, que causa um rombo, um baque tremendo em Paulo. Porém, agora afetado, indiferente à fazenda, sem o espírito dominador, ele não reage a isso. Percebe que perdeu sua imponência ao perder quem amava, a falta das perseguições, denúncias de Madalena. Mesmo morta, sua imagem ainda o assombra, sente-se vazio. O persegue de modo que ele reflita e perceba a péssima pessoa que se tornara, todos os cruéis atos que cometeu ao redor de sua infame vida. Toda sua ganância que o aproximou de valores extremamente dominadores e o ilhou, o afastou das pessoas, dos valores humanos. Sente-se muito ruim por destruir a vida das pessoas ao seu redor.
Poderíamos dizer que, mesmo morta, Madalena ainda continua atuando, como lembrança, para o antagonismo da história. Antagonismo esse que é inverso se comparado aos antagonistas padrões de histórias. Pois São Bernardo foca o personagem que é cruel, dominador, deixa o personagem ruim como protagonista, enquanto o que possui valores morais e éticos (no caso, Madalena), passa a ser a antagonista, mesmo com um espírito doce e bondoso. É errôneo atribuir à palavra antagonista o conceito de “vilão da história”, pois isso depende da análise contextual do texto. Nesse caso o vilão é o próprio protagonista, e a “mocinha” é antagonista por ser a bondosa, em contrário ao vilão protagonista. É uma aplicação filosófica, literária e psicológica da lei física de Einstein, da Teoria da Relatividade. Tudo, inclusive os atos e ações humanas são sempre relativos dependentes diretos do ponto de vista aplicado ao contexto. De acordo com o prisma analisado, com influência de interesse e ideologias dos observadores, algo pode ser julgado, considerado bom ou ruim.
A continuidade de presença de Madalena como antagonista da história, influenciando Paulo, levando-o à ruína (importante destacar, a ruína referida aqui é monetária. Pois ele vai, com a ruína monetária, criando consciência, tirando a venda da ganância de seus olhos e observando o mundo ao seu redor e julgando seus próprios atos cruéis):
— Estraguei a minha vida estupidamente.
Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos… Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que me aflige. (RAMOS, 2006, p. 197).
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os bons propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. (RAMOS, 2006, p. 197).
A partir deste fato, como forma de entender sua vida, os atos e pensamentos de sua esposa, compreender de forma “desalienada” o mundo ao seu redor, retornamos ao início de nosso ensaio monográfico, que é o início da história, onde Paulo escreve então o romance de sua vida. Um romance de grande densidade literária por apresentar de forma tão complexa os sentimentos, pensamentos, relações humanas. Através de uma linha temporal de atos objetivos, concretos, notamos os pensamentos, a subjetividade de emocionais por trás de tais atos, que os ocasiona, os comanda.
Por ser um romance onde o protagonista narra fatos que ocorreram em sua vida, o tempo verbal é pretérito perfeito. Os tempos verbais apresentam-se no pretérito, quando ele narra os fatos passados, maior parte do texto. Inclusive no início do texto, quando ele encontra-se no momento presente, utiliza os verbos no pretérito ao citar o que fez momentos antes de escrever a obra, e como se sente em relação a isso. Esses verbos pretéritos podem ser encontrados ao redor de toda a obra:
Madalena, propriamente, não era uma intelectual. Mas descuidava-se da religião, lia os telegramas estrangeiros.
E eu me retraía, murchava. (RAMOS, 2006, P. 143 – 144).
Apesar de narrar os fatos, ele não possui a influência densa no discurso das personagens. Ou seja, o discurso é direto, reproduz de maneira direta, integral e literal a fala dos personagens, introduzida com travessões:
— Literatura! Resmungou Padilha.
— Literatura não, gritou Azevedo Gondim. Se rebentar a encrenca, há de sair boa coisa, hem, Nogueira?
— O fascismo.
— Era o que vocês queriam. Teremos o comunismo. (RAMOS, 2006, p. 136).
Apresentamos, então, o denso e consagrado romance de Graciliano Ramos, São Bernardo, um marco literal por trazer paradigmas, pontos e referenciais novos em relação ao conceito de antagonista, e uma grande análise de ações humanas.